Imagem: tentativa de reprodução do espaço fílmico do “Cinema de Maria Pinho” com a “Inteligência Artificial.
EU ESTAVA LÁ
Foi num sábado à noite. Ano? Antes de 1972. O evento? Um show no “Cinema Maria Pinho”. O Artista? “Luiz Gonzaga, Rei do Baião”. A expectativa era enorme, pois não era comum a cidade receber artistas de renome nacional. Os catiteenses se prepararam para o grande dia: banho tomado, perfume pulverizado, roupa dominical e o ingresso no bolso, dirigiram-se ao cinema. A postos, às 19 horas em ponto, o rígido Tião, censor do IEAT, que não permitia a entrada de ninguém sem a apresentação do ingresso, abria parte da grade para receber os fãs do cantor.
Naquela época, o Brasil vivia o auge da Ditadura Militar, com o fortalecimento das medidas repressivas, incluindo a implementação do AI-5, que ampliou os poderes do governo e cerceou as liberdades civis. O povo desenvolveu uma repulsa ao sistema autoritário, e estudantes e pessoas esclarecidas seguiam intelectuais e artistas críticos ao regime, como Leonel Brizola, um político influente que se opôs à repressão. Os irmãos Heifil (Heitor e Hélio) criticavam o regime através de suas produções culturais. Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil usavam suas músicas como forma de protesto contra a censura e as violações de direitos humanos. Era um período em que “Direitos Humanos” era o tema central das discussões. A maldade dos militares para com os angelicais: como Zé Dirceu, José Genoino e seu irmão Cuecão, Carlos Marighella, Carlos Lamarca e muitos outros “santinhos” era amplamente comentada.
Naquela época, Gonzagão ainda não era um artista consagrado. Considerado um cantor caipira, muitos intelectuais tinham vergonha de admitir que apreciavam sua música. Havia também rumores de que o “Rei do Baião” se aproximara dos militares. Bem, momentos antes do show, ainda do lado de fora, havia um burburinho, um fuxico da gota serena de um grupo de boçais, a elitizinha fajuta da cidade se organizando para pregar uma peça no cantor. Vi aquela movimentação e não entendi o motivo, então procurei entrar para garantir um lugar privilegiado. Momentos depois, o grupo entrou, todos com um jornal na mão, e eu continuei sem entender. Logo após, o locutor do cinema anunciou a entrada da atração da noite, o ilustre Luiz Gonzaga, que passou pelo corredor central do salão e se dirigiu ao palco, logo abaixo do telão. Quando Gonzagão se aproximou do microfone e começou a se apresentar, os pequenos burgueses dos murmurinhos levantaram o jornal à altura do rosto, como se estivessem lendo alguma notícia. Luiz Gonzaga percebeu o desdém, mas continuou cantando, enquanto a galera lia o jornal. Em certo momento, o cantor não aguentou mais, parou de cantar e começou a soltar o verbo.
Luiz Gonzaga deu uma lição de moral tão contundente naqueles pequenos burgueses que se achavam intelectuais, que logo começaram a perceber a idiotice que estavam fazendo. Aos poucos, um a um, foram se abaixando, se escondendo atrás das poltronas e, devagarinho, saíram de mansinho, com o jornaleco debaixo do braço, o rabo entre as pernas, e chisparam no mundo. Acredito que o sermão do caipira, cantador de baião, tenha servido de lição para aqueles jovens estudantes doutrinados nas faculdades, que acreditavam em tudo que ouviam sem antes fazer uma reflexão mais aprofundada sobre a realidade do momento.
Somente depois de 1972, Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, passou a ser aceito pelos intelectuais da época, após aceitar o convite de Caetano Veloso para gravar um show ao vivo no Teatro Tereza Rachel, em Copacabana, RJ, em 24 de março de 1972.
É isso!
Por Zé William