Operação, um xeque-mate na vida

Tudo vai muito bem na vida, muita festa, muita alegria, brigas, feijoada, ressaca, até que um dia se descobre que está doente, e o que é pior: precisa ser operado. Nesse dia, você percebe que é mortal, e que todo o tempo saudável que viveu foi mal usado, investido em futilidade, só agora percebe que o sonho de um dia vir a utilizá-lo de maneira útil, pode, simplesmente, acabar numa mesa de cirurgia.

Não sei se por deboche ou medo, não levamos a vida a sério. Mentimos para nós mesmos, sem nos preocuparmos em elaborar mentiras mais trabalhadas, com o mínimo de arte possível. Criamos desculpas esfarrapadas para justificar os nossos erros, vivemos assim sem dar a menor importância a nossa existência, até que um dia um médico nos chama em particular e, impiedosamente, nos diz uma verdade que jamais pensaríamos ouvir: –– Você precisa ser operado! Não tem escapatória!–– Nessa hora, você sente o mundo desabar, tenta fugir, mas acha o universo pequeno demais para se esconder. Pensa em não acreditar no que está ouvindo, mas o médico está lá, de olhos cravados em você. Pensa em sair correndo daquele lugar, porém, acaba descobrindo que não consegue mais se enganar, e que a verdade é grande demais para enviá-la a outro endereço, senão a si mesmo.

Entra dia, sai dia, você não pensa em outra coisa. Como se comportar daqui pra frente? Como entregar minha vida, o meu maior patrimônio, aos profissionais construídos nas universidades brasileiras? Como acreditar nesses médicos que ainda carregam consigo a tão manjada tradição de manter o excesso de positivismo, toda vez que se dirigem a um paciente? O caso requer cuidado. O assunto é delicado, complexo, estarrecedor! Num mundo capitalista em que vivemos, onde a individualidade é gritante, e tudo se move através da força da grana. Como entregar a vida aos cuidados do primeiro profissional que aparece na frente, sabendo eu que em questão não está só a saúde, como também o dinheiro, e este em primeiro plano? Como acreditar que o mundo mudou só porque eu adoeci, e que de uma hora para outra as pessoas deixaram de ser egoístas e se ajudam mutuamente, totalmente desinteressadas? Seria eu um paciente tão ingênuo assim?

Quer queira quer não, a operação tem que ser feita. Por mais que eu relute contra o tempo, o dia chega e antecipado, pois o doutor exige que o paciente esteja no hospital de véspera. Na recepção, um alívio, você descobre não ser o único no mundo a se submeter a uma cirurgia. Você olha para as pessoas que serão operadas e percebe que todas elas estão serenas, com um semblante tranquilo, cheguei a sentir inveja e pensei:¬¬ Será que esse pessoal teve tempo e dinheiro para fazer uma pesquisa detalhada sobre a capacidade técnica da equipe médica que vai operá-lo? Será que esses pacientes mandaram checar as instalações do hospital, e concluíram que se trata de um hospital o qual se encontra dentro dos padrões, com instalações modernas e oferece o mínimo de segurança, no caso de uma falha humana ou um erro técnico? A minha curiosidade era tamanha que eu os indaguei: Como conseguiram? E eles, em coro responderam: Entregamos a Deus!

Na medida em que a burocracia ia sendo vencida, a verdade ia se tornando real demais para meu gosto. ––Apartamento 513!––( Grita a recepcionista que pega minha mão e pede-me para segui-la). Corredor adentro eu vou acompanhando aquela mulher bem vestida, como estivesse sendo conduzido a um matadouro. No meio do caminho, começo a suar frio, o pânico se apodera de mim e eu grito: O Dublê!?… Cadê o dublê ?!… Que porcaria de hospital é esse que não tem sequer um dublê para o caso de uma emergência? Uma operação de risco como a minha, requer um dublê! A recepcionista não dá nem tchum para minhas asneiras.
–Não seria hora dos médicos pensarem no assunto? A recepcionista finge não ouvir e, com os passos firmes e determinados, segue rumo ao apartamento, balançando os quadris.

No apartamento, em plena noite de sexta-feira, em que todo mundo se diverte em um sambão qualquer da cidade, eu me encontrava lá no hospital de pijama, tomando sopa, comendo bolacha e assistindo a novela das oito. Eu falava comigo mesmo: A que ponto cheguei…

Depois de uma longa e tenebrosa noite, recebo a primeira visita do dia. Uma simpática enfermeira entra no quarto anunciando que os médicos estão a postos. Eu tento me esconder no armário, ela me descobre, corro pro banheiro e me tranco por dez minutos, para uma reflexão rápida a fim de analisar uma chance de fugir. A enfermeira bate na porta e me chama para a realidade, e eu acabo cedendo ao apelo da mulher. Ela pede para eu apressar-me nos preparatórios pré-operacionais, que nada mais é do que tomar banho, raspar o sovaco e amarrar no pescoço o avental de Mayko Tayson. Depois, já deitado numa cama de roldanas, fiquei imaginando: e se na hora “H”, o médico começar a pensar no popozão da Valesca Popozua? É Quando os enfermeiros dão um sopapo na cama, e com um largo sorriso, me conduzem à sala de operação, como se estivessem me levando para um piquenique.

Na sala de operação, a minha maior surpresa: pela primeira vez em minha vida, eu vi os médicos esperarem por mim. Eu, um paciente desimportante, sem dinheiro, lembrei-me logo da galera do SUS, morreria de inveja se visse tal quadro, o quadro totalmente invertido, a turma do SUS ia adorar. Nunca me senti tão importante, todos os holofotes direcionados para mim, eu era o centro das atenções. Médicos pras quinze bandas. Um pega na minha mão direita, outro pega na minha mão esquerda, um tira sangue daqui, outro aplica uma injeção dali , bracelete que infla a toda hora, apertando mais do que final de mês e, por fim, um capacete com tubos canalizados para meu nariz que sopra minhas narinas e me faz dormir.

Quando acordo meio atordoado, curioso para saber de que lado eu me encontrava, se do lado de cá ou do lado de lá. A minha primeira iniciativa foi logo procurar por São Pedro e a minha alegria ia aumentando na medida em que não encontrava o santo. Ao avistar um homem de touca e máscara verde que ia se aproximando eu me animei quando ele disse: A operação foi um sucesso, a vida lhe sorri novamente. Então, eu percebi que ainda não havia sido daquela vez a minha mudança de vida.

De volta ao apartamento, aos poucos fui dando conta do que fizeram comigo. Eu me sentia como se tivesse sido atropelado por uma scânia carregada de paralelepípedo. O corpo doía tanto que não valia mais a pena lamentar. O simples gesto de movimentar a cabeça do dedão do pé era uma aventura radical. Só me restou a liberdade de mexer a bolota preta dos olhos, de um canto para o outro. Naqueles instantes, eu me sentia na fronteira da vida com a morte, a espreitar os acontecimentos, pra saber de que lado pendiam as tendências. Toda vez que me lembrava de infecção hospitalar, eu sentia o hálito frio da morte rondar meu quarto, e começava a perder terreno para vida, entretanto, contava com o único aliado, o tempo, que custava a passar e a minha vida ficava a mercê dele que vagarosamente ia passando, aos pingos, no lerdo ritmo do conta gota do soro. E eu lá estático, calado em cima daquele leito, onde só me restava pensar, pois, pensar, era a única coisa que eu podia fazer sem sentir dor. Chequei a pensar em processar o médico por ter me esfaqueado, mas lembrei-me que um bom advogado poderia defendê-lo, alegando socorro à vítima. Procurava entender por que aquela minha insistência em me manter vivo, se morto valeria mais, pois todas as minhas apólices estavam pagas. Concluí também que todo cidadão deve se submeter a uma operação, para ficar mais humilde e tirar melhor proveito da vida.

Depois de horas de reflexão, entra a primeira enfermeira, de dezenas outras delas que me auxiliarão ao longo da minha estada naquela casa de doentes. Delas, a mais simpática vem com uma injeção na mão; outra com a péssima mania de me obrigar a tomar banho todo dia; algumas esperam eu pegar no sono para ter o prazer de me acordar, em seguida medir a pressão ou dar remédio pra dor que não passa. Pensei até em mandar buscar um dos remédios de televisão que o indivíduo toma e a dor some. No leito hospitalar, eu percebi o quanto a vida é bela e passei a mudar totalmente o meu relacionamento para com ela, a ponto de o ronco barulhento dos motores dos ônibus urbanos deixarem de ser um barulho que incomoda, e passarem a ser o símbolo de vitalidade dos atletas que tem a disposição física daqueles que trabalham em busca de dias melhores.

No egoísmo desenfreado de encontrarmos Deus a todo custo, não damos conta do quanto é generoso o Todo Poderoso, que nunca se afastou de nós um só instante, e os grandes milagres que aguardamos com ansiedade acontecer um dia, jorram à toda hora, nos gestos mais simples da nossa existência, no pequeno gesto de andar, trabalhar, comprar pão, pegar ônibus, amar, fazer sexo, servir ao próximo e sobretudo, no simples gesto de viver.
Zé William

Vitória da Conquista-Ba, 08 de setembro de 1997.
José William Vieira

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